quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Sobre coser e coseduras

A primeira vez que a encontrei, senti uma identificação acontecer. Nosso primeiro encontro foi pura coincidência. A semelhança dos nossos nomes nos aproximaram, e por alguns segundos, cheguei a pensar se ela não seria uma parente distante,se algum laço de parentesco nos unia. Priscila Dias. O único sobrenome que quebrava a coincidência, era a continuação do meu:dos Reis.
Confesso que fiquei surpresa com seu semblante. Ela tinha cachos negros que pendiam sobre seu ombro e que faziam o desenho de uma espiral. Aqueles cachos se movimentavam a cada ação do seu corpo. Sob seus cachos, havia adornos de tecido, confeccionados manualmente, por ela mesma.
Ela tinha uma certa relação de fetiche com os adornos que produzia.Era como se colocasse todos os seus sonhos e desejos à disposição de suas mãos, que davam forma concreta à eles, cosendo tecidos diversos. Conseguia, com maestria, unir tecidos de categorias diversas,texturas,cores,volumes e histórias diferentes.
Não era nenhum mistério para ela como unir trapo e cetim e o fazia de maneira esplendida.Para ela aquele coser não era um mistério, mas ela era por si só a tradução do mistério, se é que isso existe.Há de se confessar aqui que, por alguns segundos novamente, o susto me tomou, me decepcionei ao procurar nos dicionários a palavra coser e pensar que esta não significava o que eu almejava dizer. Pensei comigo:como pode uma só letra mudar o enredo todo.Cozer com z diz respeito ao ato de cozinhar, e coser com s, essa sim, é palavra que diz sobre o ato de costurar.Não sabe o alívio que me toma poder manter palavra tão poética no meu relato sobre Priscila.
Esse segredo se dava na sua relação com o mundo das coisas.Era ela toda inusitada, não se podia esperar uma determinada ação de sua parte.Ela sempre surpreenderá, se colocando de maneira diferente em cada situação. Priscila tem o dom de antever cada ação com um suspiro que impulsionará seus atos.
Penso aqui se deveria eu, relatora, conjugar sua história no passado ou colocar no presente, já que o fascínio por épocas outras a toma e a leva para universos distintos, universo dos chapéus, casquetes, melindrosas, jazz, ópera, teatro, cabaré.
Acho que o passado lhe cabe melhor,mas prometo não me prender à isso, já que ambas Priscilas caminham tranquilamente entre os anos 20 e o século 21.Essa transição é divertida e mistura elementos de ambas épocas de tal forma, que quase nos perdemos e esquecemos em que época estamos.
Priscila almejava, por alguns piscares de olhos , pelo menos, habitar a sociedade banhada na era do jazz.Ela tinha imaginário tão fértil que a transportava para esse lugar, nesse ano, apenas no encontrar de seus cílios superior e inferior.Quando os mesmos se fecham e lacram, de certa forma, sua visão, seu universo interior fala mais alto.Na verdade não fala, grita.solta urros de felicidade por poder, contida em si mesma, viajar para essa época e viver nessa sociedade.
Dentro de si,em seu intimo mais que colorido, já elabora as cenas que pretende viver, ambientes onde pretende estar, adornos e vestimentas que usará.De olhos fechados, com suas retinas cobertas e imersas no interior de si, ela se veste.A primeira vontade é enfeitar seus cabelos.Prende em meio aos seus cachos, um casquete em forma de miniatura de chapéu preto, com penas saltando do seu centro e um véu à frente de sua visão. Esse véu tem tramas que colocam as imagens que estão no campo de sua visão em formas geométricas.Tudo o que enxerga fica contido em seu véu, que fragmenta as imagens,acompanhando o desenho da renda.
Depois do cabelo adornado, e os cachos alinhados, banha-os em creme de rosas.Começa pelas roupas intimas.Envolve seu corpo no espartilho,bem preso, para não lhe escapar nenhuma impureza. Parte então para as pernas.Veste cada perna em um orifício da calcinha e a puxa para cima, para cobrir suas vergonhas. Senta em uma cadeira estilo art nouveau, veste a cinta liga desenhando rendas sobre as pernas.
Levanta-se de sua cadeira e vai até o guarda roupas. Retira dele o cabide que sustenta seu vestido de seda, de silhueta tubular, curto,leve e elegante e o veste, deixando braços e costas à mostra, para lhe dar liberdade em seus movimentos para dançar Charleston, sua dança favorita.
Ao terminar de se vestir, desce as escadas ofegante, e depara-se com seu ser amado, à abrir a porta para sua entrada.Entra no carro,olha para o lado, e ali está o motivo de toda euforia.Um distinto cavalheiro que sustenta todas as suas projeções de amor natural, profundo,íntimo e verdadeiro.
Selam o encontro com um beijo estalado,já que tinham que tomar cuidado, pois não podiam mostrar suas intimidades em público.Se é que dentro do carro estavam em público, já que estavam fechados em um universo particular.
Chegando ao local do baile, o distinto cavalheiro abre a porta, desce do carro, dirige-se a porta de Priscila, oferece-lhe gentilmente a mão para ela descer com desenvoltura e mostrar-se enquanto seu companheiro.
Ao por os pés no chão, ouve um ruído estranho, que parece um disco riscado, parado na frase me Myself and I, do disco de Billie Holiday.Aquele ruído a toma de tal forma, envolvente e perturbadora ao mesmo tempo.Na pausa abrupta, feita por um risco no vinil, Priscila separa seus dois cílios, abrindo –os para escuridão daquele quarto, iluminado à velas.Olha para o lado e percebe estar em outro lugar, que parece estranho e seu ao mesmo tempo.
Passado o susto, consegue perceber o ambiente.Um tocador de vinil, adquirido em um antiquário, o disco enroscado,um croqui com sua mais nova cosedura, estilo anos 20, sob uma luz toda especial.Ela se vê deitada na cama, com um vestido antigo, comprado em um brechó, brincando sobre seu corpo.Ela olha para si e acha graça.Ri da sua viagem e pensa: a quantos lugares meu imaginário pode me levar.
Embora achando graça, não se desfez de sua imaginação.Guardou o vestido no armário,mas já pensando nas próximas cenas.Sua memória visual agora estava banhada de cenas de cabaré,casquetes,melindrosas, cintas ligas,etc.O que achou mais fascinante disso tudo é que poderia acessar aquele universo imaginário no momento em que bem entendesse.
Fechou o guarda roupa, apagou algumas velas e se preparou para sair.Parou na porta do seu quarto, olhou sua cosedura iluminada e se lembrou de uma frase que escutara e que havia lhe reverberado: O tempo não é linear. O tempo é uma espiral.Você contém dentro de si todos os outros tempos vividos.
Ela saiu do seu mundo, para enfrentar o mundo real. Mas algo que não lhe saia da cabeça, era a idéia de achar tão distinto cavalheiro abrindo portas e fazendo gentilezas, no seu mundo real.
Em pleno século 21, achar tal cavalheiro não é impossível, mas exige-lhe suor e entrega, já que hoje o mundo das relações encontra-se tão superficial e medroso, sem toques e penetrações mais profundas, que fure a barreira do físico.Mas ela conserva as esperanças, e pensa que ainda achará tão distinto cavalheiro, abrindo as portas do seu intimo colorido e trazendo à ela uma enxurrada de sensações e emoções.

Nenhum comentário:

Postar um comentário