quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Primeira caligrafia
Aquela música sempre lhe despertara para escolher as melhores palavras, as mais doces de serem degustadas em seu mais intimo ser, para depois serem sentidas aos poucos, ao sair do seu interior, sua mente imaginária, de seu inconciente despertado, para uma materialização.
Ela degustava, sentia e tocava com a língua cada palavra a ser colocada delicadamente para fora, de maneira à expressar aos outros o que sentia e pensava, mas principalmente para ela própria.Ela tinha curiosidade de saber como ficariam aquelas palavras soltas no mundo, como seria seus sons e como se daria as interpretações alheias do conjunto de palavras que ela juntaria, colocaria em ordem ou desordem.
Significava e resignificava, dessa forma, seus conteúdos internos, que ainda assim eram interiores, mas agora com a significação do ser desconhecido e exterior. Sempre lhe chamara atenção essa forma de lidar com a vida, tão sua, tão própria.Tenta nomear, classificar e pesar tudo. Sempre quis entender em qual caixa cabia e qual lhe acolhia melhor, até descobrir que não tinha que se forçar a entrar em molde nenhum, que tinha que ser ela, apenas ela.
Agora gosta do desconhecido, do diferente, inusitado sem nomes, do estranho.Procura ver em tudo o seu mais intimo conceito, que não lhe caberá da mesma forma que cabe ao desconhecido em si.
Começara a se divertir com inúmeras possibilidades do existir, e não mais tenta se colocar em nenhuma posição fixa, adora o mutável, o variável, e a frase que mais gosta de dizer é a frase de um filósofo: Só há uma coisa que permanece: a mudança.
Está agora maravilhada, pois não precisa assumir nenhuma rigidez e não precisa nomear os sentimentos e personagens, muito menos pensar na conjugação do verbo, no tempo interno e externo do personagem, na seqüência do que conta. Tem o livre arbítrio de simplesmente dizer, em sons, gestos, olhares, escritas, entre linhas o que pensa e o que sente. E o melhor de tudo, é que agora não mais discerne e coloca como arbitrário razão e emoção, teoria e prática.
Certo dia, li que precisamos do outro para existir, que não somos uma ilha, e pensar nisso me levou a pensar que essa menina-mulher precisava de um par romântico para existir.Não que não exista sem o mesmo, mas com ele sua presença se engrandece, se revitaliza, a transforma, num movimento espiral que sai para o exterior e volta para o interior.
Agora sim, poderia ela dizer que tem quem contemple a sua espontaneidade, que sente a sua não presença, que tem que acessar o seu imaginário para contemplar cenas que ainda não aconteceram, que acontecerão. Imagens que lutam para manterem-se presentes dentro de si, sem se atrever a se colocar pra fora.Aquele pensamento é só seu, aquela imaginação é de sua própria fabricação.
Começa agora o primeiro suspiro e a primeira letra passa a ser delineada, o papel começa a acomodar tão delicada e sutil caligrafia.As linhas se ajustam de forma a acomodar tudo o que recebe. Ela mesma sugere um nome para a personagem da história, da sua história.Ela não quer que destinem a ela um único nome e se diverte com a possibilidade de criar, recriar, visitar e revisitar personagens. Esses personagens a tranqüilizam e a ajudam a viver de forma integral e intensa sua tão almejada vida.
Seu caderno passara anos fechado, sem nenhuma caligrafia transposta à suas páginas amareladas. Ela senta na cadeira, tira o caderno da gaveta, o puxa para junto de si, se ajeita na cadeira,fica alguns minutos de olhos fechados para sentir sua imaginação vir à tona. Pega o tinteiro, a caneta, e numa euforia contida, delineia a primeira letra que se segue a primeira palavra e que transforma-se numa frase. Inventou um nome para si, Julieta, e inicia a primeira de muitas histórias do seu caderno há tanto tempo fechado: Caligrafia de Julieta.

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